* Por Celso Vicenzi
A reportagem de capa da revista IstoÉ, edição 2.233, de 29 de agosto
("Quem são os grevistas que desafiam o Brasil"), é reveladora do modelo
de jornalismo praticado em solo nacional, aquele que já sai das
redações com a tese pronta, só faltando encaixar os personagens. O
"gancho" que sustenta praticamente toda a reportagem são os altos
salários das lideranças sindicais do serviço público federal. Agora
virou crime ser profissional qualificado e ganhar bem. E com um detalhe:
concursado, ou seja, por mérito! A tese é lapidar: quem ganha bons
salários não pode fazer greve!
Primeiro, é preciso corrigir a distorção. A maior parte dos
servidores recentemente em greve é formada pelos que menos ganham no
funcionalismo público federal, mas a revista preferiu buscar exemplos de
categorias que ganham mais, para caracterizar o serviço público federal
como uma casta de privilegiados. Desde o governo Fernando Henrique
Cardoso, a maior parte dos servidores acumula perdas substanciais para a
inflação (e o arrocho vai continuar, pois o governo pressionou – com o
apoio da mídia – e pôs fim à greve). Ofereceu 15,8% a ser pago em três
anos. Menos do que a inflação prevista para o período.
Há outras categorias profissionais, com menor poder aquisitivo e que
mereceriam reajustes? Certamente! Cabe a cada categoria de trabalhadores
saber como se organizar e reivindicar. E ao governo compete a tarefa
política de ter uma política econômica e social muito mais
transformadora do que a atual – que tem por mérito ser melhor do que as
anteriores, mas longe ainda de superar os desafios abissais da
concentração de renda no país.
A reportagem de IstoÉ acusa o "novo sindicalismo" de "ausência de
conteúdo político nas manifestações" porque busca resultados
financeiros. Ora, ora, para que servem os sindicatos? E pensar que no
passado acusavam os sindicalistas justamente pelo conteúdo político! E
não vamos nos esquecer dos sindicatos patronais, que atuam muito bem,
obrigado! E não é pouco o que conseguem do caixa do governo, embora suas
demandas nem sempre sejam divulgadas e, muito menos, criticadas. Só a
hipocrisia da mídia parece não mudar nunca.
O final da reportagem é clichê: “Reivindicar melhores salários é
legítimo, o que não é certo é deixar um país inteiro refém do
movimento”. Ou seja, repetem sempre que a greve é um direito
constitucional, mas não pode causar problemas a ninguém, nem ao governo,
nem aos empresários, nem à população. Sobre a responsabilidade do
governo, nenhuma palavra. Neste país dos absurdos, é garantido o direito
à greve, só não se pode exercê-lo (sem ser duramente atacado pela
mídia). O governo sinaliza com um projeto de lei no Congresso para
regulamentar as greves no serviço público. Não era sem tempo. Mas alguém
aí duvida que sobrarão para os trabalhadores apenas ônus e nenhum
bônus? As consequências, para a qualidade do serviço público, com os
servidores, na prática, impedidos de fazer greve, não tardará por se
fazer sentir, em prejuízo da população. E da democracia!
Enquanto isso, ninguém debate os lucros em benefícios de poucos que
fazem do Brasil um dos países com a pior distribuição de renda. Como se
entre uma coisa e outra não houvesse relação de causa e efeito. Para se
chegar a tanta exploração, o que se faz, basicamente, é transferir a
renda (de todos os níveis de trabalhadores) para uma pequena parcela da
população. É por isso que, cada vez que os trabalhadores – públicos ou
privados – tentam reivindicar uma maior participação na distribuição da
riqueza nacional, são duramente atacados, sob pretextos que não se
sustentam numa análise mais apurada dos fatos. Análise que a mídia nunca
faz com a isenção necessária, ou teríamos um outro país.
Se os serviços públicos – no todo ou em parte – são essenciais,
precisam de uma legislação que igualmente os trate assim. No entanto,
até hoje, o governo não reconhece uma data-base para negociar e não tem
por hábito repor a inflação anual aos salários, como se o funcionalismo
público federal não tivesse contas a pagar (que obviamente acompanham a
inflação, ou, mesmo, aumentam acima dela). Alguns “patrões”, tanto da
esfera privada quanto pública, só negociam de fato com greve. Antes
disso, as negociações costumam ser apenas um jogo de aparências. Desde
março, houve mais de 200 reuniões de várias categorias de servidores com
o governo federal; no linguajar dos grevistas, praticamente só
"enrolação".
E para quem ainda não entendeu esse jogo, é bom esclarecer que o
governo é parte atuante nesse modelo de país excludente. Transfere a
maior parte do que arrecada para alimentar uns poucos tubarões: somente
em 2011 foram gastos R$ 708 bilhões com a "dívida pública" (leiam-se
ganhos dos bancos e outros aplicadores, principalmente em papéis). Isso
sem falar em isenções, subsídios, perdão de dívidas, doações de terrenos
e imóveis, financiamentos a juros "especiais" etc. etc.
E antes que alguém se desinforme ainda mais: em 1995, o governo
federal gastava, com a folha de salários do funcionalismo, 56% do que
arrecadava; em 2011, gastou 32%. Esse “escândalo” a mídia não vê, porque
distorce os fatos. E continua a falar em gastos excessivos do governo
com os trabalhadores. É fácil enganar a opinião pública com exemplos
isolados e descontextualizados. Ainda mais para uma população que se
informa basicamente pela TV e pelos grandes jornais e revistas – que
demonstram cada vez menos independência política e apreço por uma
informação mais abrangente dos fatos, mais verdadeira. São os "cães de
guarda" do grande capital, a serviço da exploração máxima do planeta e
dos trabalhadores.
*Celso Vicenzi é jornalista e assessor de imprensa do
Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Federal no estado de
Santa Catarina.
Nenhum comentário:
Postar um comentário